Tiago Bartolomeu Costa — Desejo e projecção

— Quando me atirei à água, não sabia que eras tu.

— E se soubesses, deixavas-me a morrer?

— Não. Há muito que te queria chegar à fala.

— Não nos podemos falar.

— Se tu quisesses...

Este diálogo acontece já sob o enleio da música que Bernardo Sassetti escreveu para o filme Maria do Mar (1930) de Leitão de Barros. Acontece já depois de Maria ter oferecido uvas a João, sentada na bica de água, estafada pelo caminho. Acontece antes de se beijarem, antes de se casarem, de serem proscritos, de negarem a violência que as famílias, as mães viúvas, alimentaram, depois da tragédia em que o pai de Maria perdeu o controlo do batel Maria do Mar, onde servia o pai de João. Mas acontece depois do mais erótico, do mais belo, do mais carnal dos salvamentos in extremis das águas da Nazaré, com os dois corpos quase nus, filmados como se fossem apenas sexo e desejo, antes de tudo ser proibido. Pela censura. Pela família. Pela política. Pela culpa. Pela vigia. Pelo próprio desejo. São, por isso, corpos suspensos, como Maria carregada nos braços de João, cumprindo uma ideia de cruz, ela levada e ele sustento, com a câmara a percorrer-lhes o sal, as formas, o sexo com foco de pecado e de culpa.

São fantasmas à clareza explosiva do mar e da luz, queimados já pelo sol, resgatados da morte e da água. São corpos que suspenderam o desejo em noites que adiaram um encontro que acontecerá depois, muito mais tarde, numa estrada sem hora, sem testemunhas, só deles. Como se da beira da água à fonte da bica, todo o peso de um contra o desejo do outro, se materializasse agora num diálogo que é só já confirmação da vontade de um pelo outro, mas sem jeito para o real, para a verdade, para a evidência. Isso, esse espectral desejo que a imagem de Leitão de Barros e a música de Bernardo Sassetti materializam, é o mais próximo que podemos estar da confirmação emocional do que foi sempre ambição de uma presença física.